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Arquivo da Categoria: Crónicas

Laranjas para deuses

“Há uns anos dois amigos meus que pareciam ter pouco a ver um com o outro, casaram-se. Quando perguntei à irmã dela a razão de tão repentina e inesperada união, respondeu-me: é simples, ele tem 40 pares de sapatos. Ela também. Não achas que é uma boa razão? Demorei quase dez anos a achar que sim.

A alquimia que mantém um casal unido sempre foi e há de ser um dos mais belos mistérios da natureza. Genética, educação, princípios morais e uma série de factores aleatórios como a sorte e a cor dos olhos podem ajudar, mas há sempre qualquer coisa para lá do racional, do dizível, do explicável. Uma espécie de magia que mantém a frescura e a vivacidade; uma forma de arte para transformar a rotina num peso leve. E claro, muita sabedoria para saber como lidar com os piores momentos com a displicência equivalente ao empenho que se põe nos melhores. E além disso, muito amor, porque viver com alguém não é algo que se suporte ou se aguente, não há meio termo; ou é bom, ou é óptimo ou então é um inferno, mesmo que o inferno seja uma paz podre sem ondas, estagnada e a ganhar verdete de cinco em cinco minutos.
A teoria da cara-metade desde sempre perseguiu a humanidade. Os árabes imaginaram Alá a cortar laranjas e espalhá-las pela terra ao acaso, esperando que o destino a pusesse a rolar na direcção uma da outra. Mas esta teoria é redutora, porque uma laranja pode encaixar com várias metades, pelo menos metaforicamente, já que nunca fiz a experiência com os citados citrinos. Na década de 90 que foi prolixa em divagações místicas apareceram livros sobre a alma gémea, uma espécie de guia emocional para os mais carentes, uma mistura de paliativo com ansiolítico de efeito estonteante e entorpecedor para orientar os sós e abandonados. Vivemos numa sociedade onde há remédio e soluções “à la carte” para tudo, amor incluído.
Ainda voltado ao par de sapatos, o que faz com que um homem e uma mulher fiquem juntos para sempre?
Com ou sem a ajuda de Deus ou de Alá há muitos que ainda o conseguem. E falo dos que estão juntos porque querem, os que estão juntos por circunstâncias extrínsecas à essência da questão não entram neste campeonato. Como o Pedro e a Luísa que são os dois músicos e vivem numa casa onde o piano e o violoncelo dormem na mesma sala mas nunca entram em competição nem dentro nem fora de casa. Como O Miguel e a Lúcia que sempre respeitaram os amigos um do outro. Como o Paulo e a Verónica que aceitaram viver dois anos separados para que ela pudesse dar um salto qualitativo na carreira. Confiança, conforto e cumplicidade parecem ser palavras-chave. Todos falaram em tolerância, paciência, calma e segurança. Quase todos falaram de paixão, todos mencionaram harmonia, estímulo, entendimento e esforço. Alguém acrescentou: não é uma coisa que se procure, simplesmente encontra-se. O trabalho está em não se deixar perder. Laranjas? Isso é para os deuses.”

Margarida Rebelo Pinto

 
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Publicado por em Agosto 28, 2010 em Crónicas

 

Adeus

“Despedi-me de ti para sempre, ainda que vá estar contigo esta semana, e na próxima, e nas que se seguirem.

Despedi-me de ti sem uma palavra, pelo contrário, trocámos conversa de circunstância, ou melhor, tu deste o tom, como sempre fazes, a comandar tudo e todos.

Despedi-me de ti e, de repente, foi como se a teu lado estivesse a outra que um dia fui, coisa pequena com onze anos, aquela a quem roubaste a infância, a juventude e tudo o mais.

Não estiveste sozinha na tarefa, é bem verdade. E nada teria acontecido se eu tivesse tido a inteligência, a força, o que queiras chamar, de não ter passado toda a minha vida tentando que me amasses, tu e os outros. Que me aceitasses, tentando descortinar nos teus olhos o amor que me era devido.

Enganei-me a mim estes anos todos, e agora que te digo adeus rezo para que o peso da tristeza, este buraco cravado no meu coração, desapareça de vez.
Já vivi mais de metade da minha vida em busca do que não existia, como uma cadela sem dono, só com três pernas, e que ninguém quer.

Digo em silêncio que tudo vai correr bem, tudo vai passar. Mas a dor é igual à que sempre foi e nunca me habituarei à desilusão, à constatação que, afinal, existem coisas que não são sagradas, a vida pode, pura e simplesmente, ser-nos cruel sem razão.

Talvez um dia eu te consiga desculpar, ou melhor, compreender. Mas por essa altura já deverei ter perdido a noção do real, porque, quando chegar ao fim da vida, a percepção do que realmente aconteceu e do que sonhei deverá ser tão difusa como as lágrimas que agora choro, pelos cantos da casa, pelos quantos da vida.”

Luísa Castel-Branco
in Destak 19|07|2010

 
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Publicado por em Agosto 18, 2010 em Crónicas

 

Morrer sem ter um colo

“Nunca ninguém me pegou ao colo, me embalou, tomou conta de mim e me levou até aos céus. É assim que vou morrer, sem saber o sabor da acalmia da mente, da alma, como uma praia infinita de areia branca e águas transparentes, uma floresta de múltiplos verdes em que o vento deposita uma dança maravilhosa, numa melodia impossível de descrever.

Vou morrer virgem de tantas coisas, de tantos sentimentos e sensações que nunca provei, que não sei como são. Se o destino existe, e se ele se prende com reencarnações sucessivas, a essa outra que virá um dia eu desejo a paz de espírito, sem assombros de fantasmas da infância, sem o peso de todos as responsabilidades e principalmente sem esta lucidez que, como um espelho gigante e multifacetado, mostra-me clara e nitidamente os meus erros, omissões e faltas. Tenho saudades do que não conheço, mas que revejo na vida dos outros.

Tenho pena desta minha existência, desta passagem pela vida, tão imperfeita, tão pouco tantas coisas e tantas outras. O irónico é que, desde que me lembro de ser gente, sonhei com esse colo, esse abraço protector, esse escudo contra o medo, as tempestades, os desgostos ridículos e as amarguras de lágrimas de raiva e sangue. Sonhei-o, a esse meu cavaleiro andante. Nada de especial, nada de fantástico. Apenas alguém suficientemente bom, inteligente e capaz de me amar como sou, de me conhecer para além do óbvio e de me cuidar, como se fosse um pedaço de jardim, um livro antigo ou uma peça sem outro valor senão o da saudade.”

Luísa Castel-Branco

 
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Publicado por em Agosto 16, 2010 em Crónicas